Foto de Eduardo Seidl. Textos de Clarissa Pont
Em Assunção, Carta Maior conversou o presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo. Para ele, é fundamental consolidar a identidade política e realizar um processo transformador dentro do país.
ASSUNÇÃO - Em um país onde a filiação ao Partido Colorado parecia ser sinônimo exclusivo de participação política, a coligação criada em torno do candidato Fernando Lugo garantiu, pela primeira vez em 60 anos, a dúvida sobre quem ganhará as eleições presidenciais deste ano. A Aliança Patriótica para a Mudança reúne sob uma mesma legenda nove partidos políticos e diversos movimentos sociais, sindicais e indígenas. O Partido Liberal Radical Autêntico, a segunda força partidária paraguaia depois da tradição colorada, forma esta frente com Federico Franco, candidato a vice-presidente.
As contradições entre a base popular que impulsionou a candidatura de Lugo e o partido do vice-presidente, para alguns, são capazes de inviabilizar um governo. De qualquer forma, Lugo e Franco estiveram juntos durante toda campanha e, em discursos, têm apoiado que a Aliança é uma força não apenas eleitoral, também política. Os dois candidatos seguem em primeiro lugar nas pesquisas de boca de urna realizadas esta manhã no Paraguai. Nesta entrevista, Lugo explica como se estabeleceriam as relações entre Brasil e Paraguai caso vença as eleições deste domingo e afirma que “pela primeira vez o país vive uma etapa importante da vida política, com características quase atípicas”.
Carta Maior – A Aliança Patriótica para a Mudança é um grande mosaico de partidos e movimentos. Como será o governo em caso de vitória?
Fernando Lugo – Pela primeira vez, nosso país vive uma etapa importante da vida política, com características quase atípicas. Primeiro, pela formação de uma grande Aliança Patriótica para a Mudança, com nove partidos políticos e vinte organizações sociais, campesinas, obreiras, sindicais e indígenas. Construímos a unidade na diversidade, queremos uma democracia apoiada no pluralismo, com um desafio grande. Sabemos que os processos sociais e políticos são lentos. Eu sempre digo que os irmãos uruguaios firmaram seu acordo político em 1973 e, apenas 30 anos depois, chegaram ao poder. Nós ainda nem completamos oito meses. Em 27 de agosto do ano passado, firmamos o acordo político de formação da Aliança. Com a candidatura de um ex-bispo que vem da experiência pastoral, dos movimentos sociais. E com o Partido Liberal e Federico Franco.
Juntos, queremos ratificar tudo que, em nossas bases programáticas, temos reafirmado durante a campanha. Para muitos, mudar a política paraguaia, porque esperaram mais de 60 anos para isso, é quase uma questão apocalíptica. Nós da Aliança queremos afirmar, sem nenhum trauma, que essa transição é genuína e que a faremos de portas abertas, com transparência, em um processo pacífico, sereno e maduro.
O Paraguai não pode seguir sendo uma ilha entre as outras nações. Estamos na sombra de dois grandes países, Argentina e Brasil, Paraguai tem de consolidar e construir sua própria identidade política em um processo transformador dentro do país. A Aliança reúne ideologias pluralistas e nosso grande esforço é construir a unidade dentro desta diversidade. Construir as colunas fundamentais da democracia com esses partidos diferenciados. Desde o primeiro momento, queremos ter relações com todos países, abertas, solidárias, diplomáticas, políticas, comerciais, sociais e culturais. E Paraguai, como país independente e soberano, terá que definir com clareza sua política exterior.
Carta Maior – A soberania energética do país, questão fundamental para o Paraguai, será definida pelo próximo presidente em mesas de negociação com o Brasil. Como o senhor pretende tratar o tema de Itaipú?
Fernando Lugo – Antes de assumir a candidatura há um ano e meio, ainda nem pensávamos na Aliança Patriótica para a Mudança, já tínhamos começado com os grandes sindicatos energéticos do país uma série de encontros e fóruns sobre a questão. Faz um ano e meio que começamos uma grande campanha de conscientização sobre a soberania energética paraguaia. Assim nasceu o interesse pela temática, tanto dentro do país, como também os paises vizinhos.
Nós acreditamos que o Tratado de Itaipu, de 26 de abril de 1973 para ser exato, se deu em condições onde havia uma grande lacuna e falência democrática, e sem participação da cidadania. Antes da assinatura do contrato, houve diversas reuniões preliminares. Em uma das mais importantes, na cidade de Foz do Iguaçu em 1966, Brasil e Paraguai asseguraram que o preço da energia seria justo. Nós consideramos que a energia que hoje se vende ao Brasil não possui um preço justo, porque corresponde ao valor de custo, não de mercado. Ninguém concede sua energia a preço de custo hoje. Venezuela não vende seu petróleo a preço de custo, nem o Chile o seu cobre. A Bolívia também vende seu gás a preço de mercado. O Paraguai é um dos poucos países que vende sua energia aos sócios na construção da represa a preço de custo. Isso mudará fundamentalmente a economia nacional.
Carta Maior – E o tema dos chamados brasiguaios?
Fernando Lugo – Creio que, entre as décadas de 60 e 70, começaram a chegar os primeiros imigrantes. Nós valorizamos muito o processo migratório e o vemos de maneira positiva. Os Estados Unidos não seriam o que são hoje sem a imigração inglesa, o sul do Brasil não teria todas suas características sem as imigrações. Assim é o Paraguai. Vemos com bons olhos o processo, quando os imigrantes vêm apostar no país e estabelecem-se de acordo com as leis nacionais. Os chamados brasiguaios já são paraguaios, porque tiveram seus filhos aqui, já há quase uma terceira geração onde estão então. Eles apostaram no país. E, se existem situações irregulares agora, em propriedade de terra ou documentação, vamos fazer tudo que for possível para as regularizações.
Carta Maior – Os processos de democracia participativa estão na agenda da esquerda latinoamericana. O Plano de Governo da Aliança aposta nesta experiência?
Fernando Lugo – Desde 1999, no Paraguai começaram os processos que indicam a democracia participativa, como a criação, a coordenação e a consolidação das Controladorias Cidadãs. Os controles nacionais do Estado são insuficientes, sobretudo em relação a grande falência no país que é a corrupção administrativa. Há um outro processo sobre o qual já conversamos com muitos organismos não governamentais de controle e elaboração participativa dos orçamentos nos pequenos e médios municípios. A Aliança é a primeira experiência onde os grupos sociais indígenas, campesinos e de trabalhadores não precisam pertencer a um partido político para ter participação política, no governo ou fora dele.
Queremos que nosso governo seja aberto e participativo em todas suas instâncias porque acreditamos que esse é um dos caminhos que garantem a consolidação da democracia. Estamos convencidos que é isso que falta ao país.
Carta Maior – Como se estabeleceria o processo de Reforma Agrária no país?
Fernando Lugo – Quando percorremos o país, tivemos mais de 600 reuniões com diferentes partes da sociedade paraguaia, especialmente com o campo. Assim nasceu um imperativo de reforma agrária. É um dos eixos programáticos de consenso dentro da Aliança Patriótica. Nossa constituição nacional garante a propriedade privada, mas garante também que todos os cidadãos paraguaios devem estar assentados sobre sua terra própria. Temos umas 300 mil famílias sem terra, todas possuem o direito constitucional de assentar-se.
Estamos convencidos de que, apesar de o Paraguai não possuir uma história de reformas agrárias como têm outros países, tampouco acreditamos que exista um paradigma que se possa transportar de um país a outro, em termos de modelo. Precisamos ter clareza neste momento, sobretudo na elaboração do Cadastro Nacional de Propriedades, que ainda não temos. Infelizmente, nos anos 90, o governo recebeu um empréstimo do Banco Mundial de 40 milhões de dólares para fazer o necessário cadastro. Apenas entre 12 e 15% foi realizado.
O processo de reforma agrária que queremos instalar vai ser um modelo desenhado e consensual entre as diferentes partes da sociedade interessadas no tema. Chegou o momento no Paraguai de sentar e desenhar um modelo de reforma agrária que não seja traumático ou violento. Temos elementos que vieram dos movimentos campesinos e eles já têm uma proposta. O Partido Liberal tem outra. Queremos debater essas diferentes propostas em uma mesa de diálogo chegar juntos ao modelo de reforma agrária paraguaio.
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