Depois de 68 anos de vida, e de 32 administrações, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) abriu espaço para eleger à presidência um advogado da área trabalhista. O mérito é de Cezar Britto, que tira do limbo não o pequeno estado de Sergipe, mas, também, a própria advocacia trabalhista. E tudo ocorre em um momento especial, quando a relação capital e trabalho atinge um novo patamar de confronto.
Nesta entrevista à CartaCapital, o presidente da OAB fala de outros temas, como a escuta telefônica, para a qual pede “regras”, e da fragilidade da advocacia pública num país onde a população pobre tem acesso limitado à Justiça. Mas o foco da conversa são as mudanças na legislação trabalhista. Há, segundo ele, um ataque aos direitos trabalhistas. E ao espírito da Justiça do Trabalho, que se modernizou, mas se deformou.
“Ela foi criada por Getúlio Vargas para proteger o trabalho do poder avassalador do capital. Nesse conflito, o juiz não pode tratar como iguais o empregado e o empregador”, alerta Britto.
CartaCapital: A reforma trabalhista é um dos itens da pauta de reformas. Qual é o alvo das mudanças?
Cezar Britto: O que se quer, na verdade, é aumentar a competitividade das empresas globalizadas. Os direitos dos trabalhadores estariam impedindo os lucros, lucros maiores. Isso entrou em jogo desde o governo Fernando Henrique Cardoso.
CC: Os direitos trabalhistas entram no leilão da competição.
CB: Essa é exatamente a lógica. Por ela, o custo do trabalho atrapalha a competitividade. Onde se paga menos, mais atrativo se torna para o investimento do capital. Isso entrou em discussão com o neoliberalismo e ainda não foi abandonado.
CC: Não foi abandonado no governo Lula?
CB: Não foi. Tanto é que, já no governo Lula, foi aprovada a lei de recuperação das empresas. Uma lei que segue essa lógica. Ela revogou alguns princípios que eram fundamentais para o trabalhador.
CC: No governo de um ex-operário metalúrgico, a contradição fica maior?
CB: Fica maior. O espírito da lei de recuperação das empresas é o mesmo que se espalha por vários países. Fui convidado para fazer uma palestra em Moçambique, cujo tema foi exatamente essa lei. Ela já vigora na Argentina, no Panamá.
CC: O que ela muda concretamente na relação trabalho e capital?
CB: Havia um entendimento que o trabalhador não era responsável pela gestão da empresa da qual não aufere lucros. Por isso, se convencionou que ele também não poderia ser responsabilizado pela má gestão ou pelo desvio de verbas nas empresas. Quem tem responsabilidade é quem tem o lucro, o empresário. Nessa lógica, o patrimônio da empresa servia para garantir o salário do trabalhador.
CC: Não é mais?
CB: Depois dessa lei, apenas uma pequena parte se destina aos direitos do trabalhador. O segundo credor passaram a ser as instituições bancárias. Outra mudança fundamental, que simboliza bem este momento do conflito capital–trabalho, é o fim da “despersonalização” do patrimônio da empresa, que, antes, garantia também a indenização do trabalhador. Hoje, em caso de processo de recuperação da empresa, o patrimônio é distribuído a um conselho de credores. Um bom exemplo disso é o da Varig. A parte boa do patrimônio foi passada à Gol, a parte ruim ficou para garantir os créditos trabalhistas.
CC: Como foi a trajetória dessa mudança no Brasil? CB: Ela nasceu no governo Fernando Henrique e foi aprovada no governo Lula. O governo Lula, no início, acertou ao fortalecer os sindicatos. Fortes, eles têm um bom sistema de negociação com a classe patronal. Mas a reforma apresentada, discutida em um fórum com empregados e patrões, dorme no Congresso. Não avançou.
CC: O que é bom na proposta de reforma trabalhista?
CB: Ela permite que os sindicatos se unam, como dizemos, “do poço ao posto” no ramo da produção. Hoje, os sindicatos são constituídos por categorias profissionais. Às vezes, uma empresa tem cinco, seis ou sete sindicatos. Isso dilui a negociação e fragiliza os empregados. Essa proposta permite a união dos sindicatos. Acaba a unicidade sindical.
CC: E a questão da contribuição sindical?
CB: A contribuição sindical nasceu para premiar os sindicatos mais atrelados ao Estado. Os sindicatos precisam ser mantidos pelo reconhecimento da categoria e não pela distribuição do dinheiro feito pela contribuição. Talvez fosse o caso de se fazer uma redução paulatina.
CC: A Justiça do Trabalho funciona?
CB: A Justiça do Trabalho cresceu muito nos últimos anos e foi modernizada. É uma das mais ágeis do Brasil, e que responde mais rapidamente às demandas. A competência da Justiça trabalhista foi ampliada e absorveu um mundo de questões novas, como as referentes às greves e às indenizações decorrentes de acidente de trabalho, entre outras.
CC: Isso tem favorecido os empregados, já que se trata de uma justiça feita para equilibrar as relações entre o capital e o trabalho?
CB: Esse é o grande diferencial da Justiça do Trabalho. A grande força dela, ao ser criada, foi a compreensão de que esses dois mundos são desiguais. Ela trata diferenciadamente pessoas que não são iguais: o empregado e o patrão. É diferente do princípio que norteia a Justiça comum, que é o da igualdade contratual. Isso significa que todas as pessoas diante dela são iguais e, sendo iguais na relação contratual, têm de ser tratadas da mesma forma.
CC: Nesse sentido, os trabalhadores devem vivas a Getúlio Vargas?
CB: Vargas tinha a visão da época. Isso significou uma intervenção muito forte para suavizar muitos pontos, com a intervenção do Estado, a exploração do capital. A estrutura sindical é uma estrutura esmagadora. É preciso ser reformada e modernizar pontos que permitam uma negociação mais livre entre empregados e empregadores.
CC: De que maneira as decisões da Justiça do Trabalho, quanto a essas novas atribuições, têm sido melhores ou piores para os empregados?
CB: Alguns dizem que passaram a ser mais conservadoras. Uma contradição: a Justiça trabalhista ser mais conservadora nas questões sociais do que a Justiça comum, que privilegia a igualdade contratual.
CC: E vai ficar assim mesmo?
CB: Se a Justiça do Trabalho perder a sua razão de ser, a visão diferenciada, ela vai implodir. Enquanto esse mundo for desigual, ela não poderá ser jamais uma justiça que compreenda que há igualdade na relação contratual entre capital e trabalho.
CC: Afora essas reformas, a OAB também tem uma pauta de mudanças, como, por exemplo, o da escuta telefônica, o grampo. Qual é o problema se ela for feita com autorização judicial?
CB: A questão é reconhecer o direito de defesa para todo mundo. Os grampos telefônicos banalizados como estão facilitam a nulidade do processo no futuro. A conversa do cliente com o advogado não pode ser grampeada. É um atentado ao direito de defesa. Se isso for desrespeitado, o dano à sociedade é maior. A OAB interfere para evitar esse tipo de falha processual.
CC: Isso seria resultado do autoritarismo de uma polícia criada para reprimir a população pobre?
CB: Pois é. O sistema carcerário demonstra isso. Lá estão os suspeitos de sempre: os pobres, os pretos e as prostitutas. E há mais presos pobres porque o Estado não cumpre outro dever constitucional, que é o de garantir a defesa dos pobres. Esse seria o papel dos defensores públicos.
CC: Às vezes, parece que isso nem existe.
CB: É um sinal do abandono em que vive a Defensoria Pública, conseqüência de um país que não acredita que cuidar dos pobres seja prioridade do Estado. Mas a Constituição determina que todos tenham acesso à Justiça.
CC: E quanto às escutas telefônicas?
CB: Bisbilhotar pessoas virou uma cultura no Brasil. Há uma competição para saber quem bisbilhota. Há 426 mil grampos telefônicos autorizados judicialmente. É um número muito elevado. E qual será o risco dos grampos telefônicos num futuro autoritário? Isso também pode servir como instrumento de chantagem. A escuta é um instrumento de controle muito forte que precisa ser regulamentado.
CC: Qual é a alternativa?
CB: A escuta precisa ter prazo de validade. Acho que o limite deveria ser a partir do momento em que a investigação é tornada pública. Eles estão grampeando conversa de advogados com clientes. Isso é um absurdo. Uma regulamentação do grampo deve estipular que todos os interessados, o acusado principalmente, tenham acesso à integralidade das gravações feitas. As conversas tiradas do contexto muitas vezes ganham outro sentido.
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